Aos 90 anos, Alcoólicos Anônimos se firmam como espaço de acolhimento também de mulheres

Criado por William Griffith Wilson e Robert Holbrook Smith em 1935 nos Estados Unidos, o Alcoólicos Anônimos (AA) existe em 180 países, com mais de 2 milhões de membros. Hoje, 90 anos depois, o grupo enfrenta novos desafios, como o aumento do consumo abusivo de álcool por mulheres.
No Brasil, dados publicados em 2023 no relatório Vigitel, do Ministério da Saúde, mostram que, se em 2010 o consumo excessivo atingia 10,5% das mulheres, em 2023 essa taxa subiu a 15,2%. Entre os homens, por outro lado, o índice se manteve o mesmo —foi de 27% a 27,3%.
De acordo com a ação voluntária Colcha de Retalhos, do AA, que visa divulgar mensagens de incentivo à recuperação, em especial às mulheres alcoólicas, cerca de 5.000 mulheres entraram em contato pelos canais de ajuda do serviço no período de um ano.
Hoje existem 65 reuniões semanais de composição feminina do AA, seja presencial ou online, em todo o Brasil. Em comparação ao período pré-pandemia, a organização estima um aumento de 44,7% na presença de mulheres.
Lívia Pires Guimarães, presidente da Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil, diz que as particularidades do alcoolismo em mulheres fazem com que a doença fique invisibilizada.
‘A mulher tende a beber mais dentro de casa, até pela proteção contra eventuais agressões e abusos a que elas estariam expostas, além do fato de serem elas que precisam estar em casa para cuidar das atividades domésticas e dos filhos’, diz.
Mulheres alcoólatras também podem sofrer mais com estigmas e preconceitos. Jaira Freixiela Adamczyk, psicóloga, mestre em tratamento e prevenção à dependência química e amiga do AA —profissional que fala em nome da organização—, diz que o estigma vem também do lugar maternal em que a mulher é colocada e que até o apoio da família costuma ser diferente nessa situação.
‘Não se espera que uma mulher possa, por exemplo, dirigir o seu carro em alta velocidade com os filhos dentro do carro. Que uma mulher grávida beba. Que uma mulher beba a ponto de esquecer os filhos na escola.’
I.F., 42, que frequenta o AA há cinco anos, diz que foi a maternidade que a levou a buscar ajuda. Mãe de dois, ela conta que se viu negligenciando os filhos e sentia medo de perder a guarda das crianças. Ao assistir a uma reportagem na TV sobre os 85 anos da organização, percebeu que o alcoolismo era uma doença que poderia ser tratada.
Influenciada pelo julgamento da família, ela diz que, até então, acreditava que beber estava relacionado a falha de caráter. Foi ao entrar em contato com o canal de ajuda e participar de uma reunião online que viu que outras mulheres tinham passado pelo mesmo problema e haviam se recuperado. Para ela, estar em uma reunião só de mulheres foi fundamental.
Ela conta que então voltou a estudar e hoje é concursada pública, estável financeiramente. Consegue cuidar dos filhos e de si mesma e desenvolveu até certa vaidade. Para ela, o AA lhe devolveu sua dignidade e é o seu alicerce.
As reuniões 100% femininas são importantes para que as mulheres se sintam acolhidas e seguras para dividir questões que abririam com outros homens, desde agressões até temas da maternidade. ‘Não é só o beber solitário, mas as formas de abuso a que ela se submeteu e viveu durante o período do alcoolismo’, lembra Adamczyk.
A psicóloga destaca a sensação de pertencimento proporcionada por esses ambientes, de mulher para mulher. Ela afirma que os espaços mistos continuam muito importantes, mas que ouvir outra mulher falando gera identificação, algo crucial principalmente no início das reuniões, na chegada ao AA.
T.D., 54, está há 15 anos sem beber. Ela conta que tentava largar o álcool desde 1999, mas apenas em 2010 a sua recuperação se iniciou. Mesmo frequentando também as reuniões mistas, ela diz que algumas questões só consegue dividir nos encontros femininos.
Também por uma questão biológica, o alcoolismo tende a ser mais nocivo para as mulheres. ‘As mulheres bebem menos, em termos de quantidade, mas os efeitos são mais devastadores e muito mais rápidos’, diz Adamczyk.
Segundo o Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), pessoas do sexo feminino apresentam, em geral, uma menor proporção de água no corpo, na comparação com os homens. Isso faz com que elas tenham maiores concentrações de álcool no sangue, mesmo ingerindo a mesma quantidade de bebida.
Além da parte física, a psicóloga destaca outras comorbidades, como transtornos psiquiátricos. ‘Muitas mulheres que sofrem de depressão ‘tratam’ a depressão, ou a bipolaridade, com o álcool.’
Essa realidade é retratada na novela ‘Vale Tudo’ (TV Globo), com a personagem Heleninha Roitman. No remake que está no ar, o alcoolismo da personagem interpretada por Paolla Oliveira é debatido de forma mais profunda do que na primeira versão, de 1988, abrangendo também as questões de saúde mental.
‘Mas, na maioria dos casos, a realidade do que a gente tem na novela não é da vida real, da mulher que realmente não tem ajuda e não tem recursos’, pontua Adamczyk.
Para as mulheres que não sabem como pedir ajuda, ela recomenda ingressar em uma reunião online, mesmo sem expor a imagem ou falar alguma coisa. ‘Apenas escutar, ouvir a reunião. É assim que começa, sabe? Existe ajuda, existe esperança, você não está sozinha.’