Avanço social obrigou evolução constitucional em proteção à mulher

Avanço social obrigou evolução constitucional em proteção à mulher
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Em 2023, o STF marcou um ponto crucial na evolução dos direitos da mulher na sociedade brasileira. Por unanimidade, a Corte declarou inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio ou agressão contra mulheres. A tese, no entendimento da Suprema Corte, contraria os princípios constitucionais da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Parece contraditório que a Suprema Corte do país ainda precise se debruçar sobre uma discussão desse teor. Mas, lamentavelmente, a referida tese ainda encontrava aplicação em casos de violência contra mulheres. O julgamento, objeto da ADPF 779, representa mudança na abordagem jurídica desses crimes, sinalizando que avança, embora a passos curtos, a proteção à mulher no país.

O tema da legítima defesa da honra remete ao emblemático caso “Doca Street”, ocorrido em 30 de dezembro de 1976, quando a socialite Ângela Diniz foi brutalmente assassinada por seu companheiro, Raul Fernando Doca Street. Doca alegou que cometeu o crime em reação à suposta ameaça à sua honra, tese que foi aceita nos tribunais, abrandando sua pena.

Abaixo, relembramos o caso e esmigalhamos a evolução constitucional brasileira.

Tragédia

No fatídico dia 30 de dezembro de 1976, a socialite Ângela Diniz foi assassinada com quatro tiros na cabeça, na praia de Búzios, no litoral do Rio de Janeiro, pelo seu próprio companheiro, Raul Fernando Doca Street. O assassinato teria ocorrido após Ângela pôr fim ao relacionamento.

Após o crime, Doca permaneceu escondido por algum tempo e ressurgiu mais tarde, não para se entregar à polícia, mas para dar declarações à imprensa. A defesa, liderada pelo renomado advogado Evandro Lins e Silva, adotou a controversa tese de homicídio passional em legítima defesa da honra com excesso culposo.

Legenda de foto no jornal chamava Doca Street de “réu sofisticado para um crime famoso”.(Imagem: Reprodução / Diário da Noite)
A tese da “legítima defesa da honra” era utilizada em casos de feminicídio ou agressões contra mulher para justificar o comportamento do acusado. O argumento era de que o assassinato ou a agressão eram aceitáveis quando a conduta da vítima supostamente ferisse a honra do agressor.

No julgamento de 18 de outubro de 1979, a tese foi eficaz. Doca Street recebeu a pena de dois anos de prisão, cumpridos em liberdade. Surpreendentemente, foi aplaudido ao deixar o fórum, com gritos e cartazes de apoio.

Assista a trecho de reportagem:

Mas um ponto de inflexão ocorreu quando os movimentos feministas ganharam força.

Em 18 de agosto 1980, um ato histórico foi realizado em Belo Horizonte, pelas mulheres assassinadas por seus companheiros. À época, outros dois assassinatos haviam ocorrido, com diferença de menos de 20 dias.

Passeata em 1980, em Belo Horizonte, em defesa das mulheres.(Imagem: Reprodução/Instituto René Rachou – Fiocruz Minas)
As mulheres passaram a lutar pelo direito à vida e pela autonomia nas escolhas. O slogan “quem ama não mata” se tornou uma bandeira, e o momento levou à revisão da decisão.

Em 1981, um novo julgamento foi realizado. Desta vez, a opinião pública era outra, e estava mobilizada para condenar Doca.

O ato mostrou que a mobilização social pode mudar – e por que não dizer corrigir – o Direito.

O júri reconheceu o homicídio doloso qualificado, marcando verdadeira mudança na percepção social, e Doca Street recebeu pena de 15 anos de prisão.

“Feminicídio”

Meses antes do trágico assassinato de Ângela Diniz, no mesmo ano de 1976, o termo “feminicídio” apareceu pela primeira vez no jornal Folha de S. Paulo. Na ocasião, em comemoração ao Dia da Mulher, quase 600 mulheres de 26 diferentes países teriam se reunido em Bruxelas no Primeiro Tribunal Internacional de Crimes contra a Mulher, que estudaria delitos contra as mulheres e formas de eliminá-los.

Em 1976, texto publicado na Folha de S.Paulo citava, pela primeira vez, a palavra “feminicídio”.(Imagem: Reprodução/Folha de S.Paulo)
Entre os crimes, maternidade forçada, esterilização, abusos sexuais, trabalho não remunerado de donas de casa, dupla carga de trabalho, e o feminicídio, citado como “neologismo como qual se destaca que mais mulheres que homens são assassinadas”. No Brasil, grupos femininos de São Paulo se reuniram no MASP para debater problemas enfrentados pelas mulheres.

De fato, a conquista de autonomia por parte do sexo feminino fez com que o ordenamento jurídico fosse obrigado a acompanhar o avanço.

Evolução legislativa e direitos das mulheres

Historicamente, as leis brasileiras refletiam uma visão patriarcal, considerando a mulher como propriedade do marido. O Código Penal de 1890, por exemplo, enfatizava a segurança da “honra”, em detrimento dos direitos das mulheres. A Constituição de 1934 trouxe avanços, mas a ditadura do Estado Novo reprimiu novamente a igualdade de gênero. A Constituição de 1988, finalmente, foi um marco importante ao consagrar a igualdade de direitos entre homens e mulheres.

Veja como estas mudanças se dão ao longo dos anos:

1824 – A Constituição Política do Império

A primeira Constituição do Brasil, outorgada em 1824, refletia o contexto da época, caracterizado por uma sociedade patriarcal e hierárquica. Não mencionava a igualdade de gênero, reforçando a subordinação da mulher ao marido.

O Código Penal de 1890 traz aspectos interessantes acerca da sociedade da época. Na parte dos crimes sexuais, localizados na sessão dos crimes contra a segurança da honra, o objetivo do legislador não parecia ser o de proteger as mulheres em si, mas sim a sua virgindade e a honestidade das famílias.

Em seu art. 268, previa penas distintas para o caso de estupro de mulheres “virgens, ou não, mas honestas”, e “mulheres públicas ou prostitutas”. Na hipótese de “mulher honesta”, o casamento com o algoz extinguia a punibilidade do crime sexual, determinação expressa do artigo 276 – quer dizer, a conduta era “corrigida” pelo matrimônio.

Já a mulher casada que cometesse adultério, pelo art. 279, seria punida com pena de um a três anos de prisão.

1891 – Constituição Republicana

A Constituição de 1891 marcou a transição do país para a República. No entanto, apesar dos avanços, não mencionava direitos das mulheres.

O Código Civil de 1916 considerava, em seu art. 6º, incapazes, para certos atos, as mulheres casadas. Era necessária permissão do marido para, por exemplo, ter uma profissão. O mesmo Código, em seu art. 233, dispõe que “o marido é o chefe da sociedade conjugal”.

1934 – Constituição Democrática e de curta duração

A Constituição de 1934 representou uma mudança significativa ao introduzir o voto feminino. Esse avanço indicava uma maior participação das mulheres na esfera pública, embora o texto constitucional não abordasse completamente as questões de igualdade de gênero. Outra evolução foi a proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de sexo.

1937 – Constituição que institui o Estado Novo com supressão de direitos e garantias

Durante o Estado Novo, sob o governo de Getúlio Vargas, a Constituição de 1937 restringiu direitos civis e políticos. O período foi marcado por um autoritarismo que, embora não tivesse um foco específico na questão de gênero, impactou negativamente a participação feminina na sociedade.

O Código Penal de 1940, que vige ainda hoje, mostrou progresso. Mas, ainda assim, havia, por exemplo, distinção entre mulheres honestas e não honestas. No lugar do crime de “defloramento”, previsto no Código anterior, entra no art. 217 o crime de “seduzir mulher virgem”.

1946 – Constituição da retomada democrática

A Carta de 1946 restabeleceu a democracia no Brasil após o Estado Novo. Contudo, não mencionou qualquer direito individual das mulheres. A Carta refletia uma sociedade que, embora em processo de modernização, carregava preconceitos.

1967 – Constituição da consolidação do Regime Militar

O regime militar trouxe alterações constitucionais em 1967 e uma emenda em 1969, mas não houve avanços significativos na questão de gênero. 

1988 – Constituição Cidadã

A Constituição de 1988 foi um divisor de águas. Reconhecendo a igualdade de gênero, promulgou avanços substanciais nos direitos das mulheres. Abordou questões como licença-maternidade, direitos reprodutivos e proibição de discriminação de gênero, e afastou-se de conotações machistas presentes em constituições anteriores.

A partir de então, várias leis de proteção à mulher seriam sancionadas.

Em 2006, a Lei Maria da Penha foi importantíssimo marco na luta contra a violência doméstica e familiar.

Em 2015, o feminicídio passa a ser considerado homicídio qualificado.

Migalhas.com.br

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