Lei Maria da Penha completa 17 anos em cenário de alta violência
Ângela morreu ao ser atingida por 17 tiros no peito, na barriga e na cabeça. Joana foi assassinada com pauladas na cabeça e nas costas. Margarida escapou do ex-namorado que tentou asfixiá-la, mas foi alcançada e morta com mais de 40 facadas. Maria levou um tiro na cabeça e perdeu a vida na frente dos dois filhos, de um e de quatro anos… E muitas e muitas outras mulheres foram vencidas pela violência.
Os nomes são fictícios, mas as histórias não. Essas mulheres, mortas por seus ex-companheiros, que não aceitavam o fim do relacionamento, estão entre as 254 vítimas de feminicídios registrados de 2015 a 2022 em Mato Grosso do Sul. Essa e outras estatísticas mostram que a ocorrência da violência contra a mulher permanece alta mesmo com a Lei Maria da Penha (Lei 11.340), que completa 17 anos nesta segunda-feira (7) – foi publicada no dia 7 de agosto de 2006.
Essa situação reforça a importância e a necessidade do enfrentamento à violência contra a mulher e do conhecimento mais aprofundado da Lei Maria da Penha, o que está entre os objetivos da campanha Agosto Lilás, instituída pela Lei Estadual 4.969/2016, de autoria do deputado Professor Rinaldo Modesto (PSDB). Durante todo este mês, são realizadas ações de prevenção e sensibilização sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher.O Agosto Lilás enfatiza o aspecto pedagógico na luta contra a violência, o que é acentuado em outra disposição da lei que criou essa campanha – a Lei 4.969 também instituiu o programa “Maria da Penha vai à escola”. A educação assume, assim, nessa normativa, o protagonismo na transformação da realidade de violações de direitos. “Acredito muito no poder transformador da educação. É preciso ensinar desde cedo o respeito, a dignidade e a singularidade de cada indivíduo, para que no futuro, tenhamos uma sociedade mais humana e menos violenta para as mulheres e para todos”, afirmou o Professor Rinaldo Modesto.
O parlamentar também observou que diversas políticas públicas e iniciativas da sociedade contra a violência têm sido implementadas, mas persistem os assassinatos de mulheres. “Nos últimos anos, vimos avanços no combate à violência contra a mulher tanto na esfera pública, com leis, diretrizes, campanhas, como é o Agosto Lilás, quanto da sociedade em geral com diversas ações, mas que infelizmente parece que os efeitos não estão sendo imediatos como necessário”, comentou. “Ainda convivemos com muitos casos de violência e feminicídio. Somente neste ano, em Mato Grosso do Sul, já foram ceifadas 16 vidas. Não podemos permitir essa crescente!”, conclamou o deputado.
Para o presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul (ALEMS), a união de esforços entre todos, agentes públicos e população, é essencial para reverter as estatísticas e apoiar as vítimas. Segundo ele, toda pessoa pode e deve fazer parte da rede de proteção. “Se você presenciar algum tipo de violência sendo cometida, seja de origem sexual, física, psicológica, moral ou mesmo patrimonial, denuncie. Essa atitude pode salvar uma vida”, reforçou.
O dado mencionado por Rinaldo Modesto dá sequência a uma trajetória de violência com índices expressivos. De acordo com o Mapa do Feminicídio, elaborado pelo Governo do Estado, do início da série histórica, em 2015, até o último levantamento, em 2021, foram assassinadas 214 mulheres. E, em 2022, Mato Grosso do Sul registrou 40 feminicídios, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São, assim, 254 mortes no período, o que significa que, no estado, uma mulher é assassinada, devido à sua condição de mulher, a cada 12 dias, em média.
O Mapa do Feminicídio mostra, ainda, que a maioria das vítimas foi morta em casa por seus maridos, namorados ou ex-companheiros, em decorrência de ciúmes ou por não aceitarem o fim da relação. Outro dado indica que é significativa a quantidade de boletins de ocorrência. Apenas em 2021, 17.856 mulheres procuraram uma delegacia para denunciar alguma violência doméstica ou familiar. É um novo boletim a cada meia hora.
MS tem a segunda maior taxa de feminicídio do país
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Mato Grosso do Sul apresentou, em 2022, a segunda maior taxa de feminicídio do país, com 2,9 casos para cada 100 mil mulheres, sendo que a média nacional foi de 1,4 por 100 mil. O número do estado só ficou abaixo, em 2022, do de Rondônia (3,1). No ano anterior, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso tiveram a mesma taxa, de 2,4 – esse resultado foi inferior apenas ao do Acre e Tocantins, ambos com índice de 2,9.
Os números da violência contra a mulher em Mato Grosso do Sul e a posição do estado no ranking nacional em taxa de feminicídios se relacionam ao índice elevado de notificações, segundo afirmou a subsecretária de Políticas Públicas para Mulheres, Cristiane Sant’Anna de Oliveira. “Nós temos um alto índice de notificações, que representa quase 100% do real”, comentou. “Praticamente, não temos casos de feminicídio que não sejam registrados”, disse. E isso não acontece em diversos estados, o que faz com que tenham taxas reduzidas e não correspondentes à realidade, conforme observou Cristiane Sant’Anna.
De acordo com a subsecretária, o elevado índice de notificações é um dos aspectos decorrentes do fortalecimento da rede de atendimento à mulher de Mato Grosso do Sul, processo que se iniciou antes mesmo da publicação da Lei Maria da Penha. “Esse processo vem sendo construído desde 1999. Nós somos o primeiro estado a ter uma Defensoria Pública de Defesa da Mulher. Temos também a primeira Casa da Mulher Brasileira. E o trabalho é realizado em conjunto com a Defensoria, Juizado, delegacias, secretarias do Estado”, completou.
Em relação à campanha Agosto Lilás, a secretária destacou como importante ação deste início de mês a Operação Bellatrix, deflagrada pela Polícia Civil na semana passada. Estão sendo cumpridos, em Campo Grande e em municípios do interior do estado, 50 mandados de prisão de autores de crimes contra mulheres.
Apesar do avanço nas ações de enfrentamento, há desafios diversos a serem superados, entre os quais está a quantidade baixa de medidas protetivas a mulheres, que acabaram sendo mortas. “Quase 80% das vítimas de feminicídio não tinham medida protetiva. Isso significa que essas mulheres entraram na rede, houve acolhimento, mas não foram adiante”, disse Cristiane Sant’Anna, acrescentando que o procedimento, importante instrumento na proteção das mulheres, poderia ajudar a evitar inúmeras mortes.
Maria da Penha, 17 anos: avanços e desafios
Publicada em 2006, a Lei Maria da Penha, marco na defesa dos direitos das mulheres no Brasil, criou mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar. “A criação da Lei Maria da Penha foi uma grande conquista das mulheres no enfrentamento da violência doméstica no Brasil e sua implantação continua impactando diversos ordenamentos jurídicos, como a criação de varas especializadas, medidas protetivas de urgência e as políticas públicas de atendimento às mulheres”, comentou a subsecretária.
No entanto, ela enfatiza também a necessidade de melhorias da lei. “É preciso melhorar sua efetivação no cumprimento das medidas protetivas, criação de grupos reflexivos para agressores para diminuir as reincidências, realização de programas de autonomia financeira que ofereçam as mulheres capacitação aliada à empregabilidade e empreendedorismo feminino, e projetos educacionais que deem conta de ensinar às novas gerações práticas sociais estabelecidas no respeito e aceitação da condição feminina em seus novos espaços de atuação”, finalizou.